Relatório 29: Eu odeio carros!
A tenente Velva ficou entusiasmada com a história da religião verde e, como sempre, foi fazer pesquisas.
Já eu resolvi polir a lataria da Vork. Não que precisasse, eu apenas sou cuidadoso com minha espaçonave.
“E aí, Kubno, pronto?”
“Estou sempre pronto para você.”
“Que ótimo. Então vamos entrevistar o inimigo do futuro.”
“Quem?”
Ela não respondeu, é claro. Sabia que tinha me fisgado.
Chegamos à Inglaterra do século XVIII na forma de Shakespeare e de Margareth Tatcher. Nosso destino era a casa de um velho chamado Ned Ludd. Velva primeiro perguntou por que ele tinha se tornado famoso:
“Virei o General Ludd porque um dia quebrei duas máquinas de tecelagem a marteladas.”
“Era tão ruim assim trabalhar?”
“A jornada em Leicester durava dezoito horas num ambiente escuro e abafado. O salário era uma merreca e você estava sujeito a castigos corporais. Quando quebrei as máquinas, isso inspirou outros trabalhadores e o pessoal saiu por aí arrebentando o que via pela frente.”
Gostaríamos de ter continuado a conversa, mas Ned Ludd estava bêbado e pegou no sono.
Velva consultou o computador de pulso e, por acaso, encontrou outra vez o nome Ned Ludd, só que dessa vez se referindo a um brasileiro do século XXI.
“Será que é uma homenagem ao velho?”
“Só há um jeito de saber. Prepare a Marreta (Máquina de Rápido Recuo ao Tempo Anterior).”
Da Leicester do século XVIII fomos parar na São Paulo da atualidade. Nosso entrevistado falava para um grupo de alunos. À saída, nos apresentamos como pesquisadores ambientais e ele concordou em nos receber. Era um cara tranqüilo; nem se importou com o fato de ainda estarmos com a aparência de Shakespeare e de Margareth Tatcher.
“A primeira coisa que quero saber”, Velva perguntou, “é por que o senhor, que se chama Leo Vinicius e é pós-graduado e tradutor, adotou como pseudônimo o nome do operário Ned Ludd?”
“A razão principal foi me resguardar, mas depois eu inventei uma boa desculpa, que é deixar as pessoas curiosas para saberem quem é o Ned Ludd. Aliás, não há provas de que um Ned Ludd tenha existido, mas, de toda forma, seu nome não significa um indivíduo, e sim os muitos trabalhadores que se envolveram no movimento que adotou o nome de luddita. Essa gente ficou conhecida por quebrar fábricas, mas na verdade eles percebiam que as tecnologias encarnavam valores e processos que os estavam destituindo de seu modo de vida e de sua autonomia.”
Velva se interessou pelo assunto: “E o senhor, hoje em dia, se opõe a algum símbolo do futuro?”
“Gostaria que as pessoas pensassem mais no quanto os carros destroem o ambiente, matam gente, roubam espaço público, pioram a qualidade de vida e amplificam desigualdades.”
“Mas o senhor acha possível viver sem eles?”
“Antes de comprar um modelo zero, prefiro que as pessoas se inspirem em movimentos como o Provos, na Holanda.”
“Que foi esse movimento?”
“Foi um movimento que contestou o automóvel de forma inteligente. As ‘bicicletas brancas’, que eles espalhavam pela cidade, foram um sucesso. Tanto que o que era um plano de loucos nos anos 60 virou política urbana três décadas depois em cidades como Rochelle (França), Aveiro (Portugal) e Helsink (Finlândia), onde bicicletas para uso público e gratuito foram postas em vários pontos da cidade.”
“E o senhor acha que existe mesmo o perigo de o trânsito travar de vez?”, perguntou Velva.
“Seria ótimo. Com os carros parados, o pedestre pode atravessar as pistas mais seguramente e, quem sabe?, as crianças poderiam voltar a brincar nas ruas, fazendo um esconde-esconde entre os carros.”
“Seria uma revolução!”
“Tem uma frase que diz: ‘Não há nada de revolucionário em relação a algo tão racional como a abolição do carro’.”
Aquela conversa me deixou angustiado. Então fiz a pergunta que me torturava:
“Devo destruir minha Vork a marteladas?”
“Não, mas lembre-se sempre: toda tecnologia propaga determinados valores e significações.”
Enquanto secava as lágrimas, aliviado, Velva voltou ao questionário:
“O senhor sabe que vai pegar um belo de um congestionamento quando sair daqui, não sabe?”
“Tudo bem. Vou colocar os fones do MP3 nos ouvidos e ficar ouvindo a música dos índios do Xingu?”
“Xingu? Onde fica isso?”
“Vocês nunca foram ao Parque Indígena do Xingu? Que diabo de pesquisadores ambientais vocês são?”
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